27 de maio de 2013

as palavras todas juntas

"Passo a noite na madrugada do teu corpo. E os minutos não se contam pelo relógio, nem pelo passar das horas; entre mim e tu há um compromisso tácito de elevar o minuto à categoria de para sempre. Nada nos aparta o sonho senão a concretização desse sonho. Sabes: um dia acordei e não estavas e foi então (toda a minha pele já o sabia antes mas eu ainda só desconfiava) que percebi que acordar é um gesto contigo dentro. E deixei-me ficar, volta após volta, na cama, à espera de que voltasses de onde estavas, à espera de que me desses licença para acordar. Amamo-nos sem pedir licença e é por isso que o olhar de um transporta o “sim, permito” de que o olhar do outro precisa. Nesse dia não voltaste e eu aos poucos fui-me recordando de que tinha um corpo para alimentar, de que havia uma fome para saciar. Mas é a cabeça que manda no que sou. E estás por dentro de tudo o que penso como a água está por dentro do vinho. Estás-me como água no vinho – como uma impreterível necessidade, como uma desesperante precisão. Somo-nos água por dentro do vinho e toda a gente sabe que se tirares a água do vinho ficas com tudo – menos com vinho. E o corpo começou a ceder, e tu não vinhas, e o corpo queria comer e beber e aquelas coisas inúteis que são a madrugada quando a madrugada não é a do teu corpo. Doía-me tudo e mesmo assim tenho a certeza de que se chegasses tudo deixaria, nesse mesmo instante, de doer. E bastaria um beijo, um “desculpa o atraso”, um “amo-te para depois do que preciso”, para todo o corpo entrar na ordem necessária. É o teu corpo que organiza o meu, as tuas palavras que me ensinam as minhas. Não vieste. E a madrugada desfez-se e a noite chegou outra vez (nem me lembro se houve dia, sem ti nunca me lembro se chegou a haver dia). O meu corpo às voltas pela cama, o meu corpo à procura de parar. Onde está o teu corpo que preciso do meu?, perguntava, e não havia maneira de parar, as pernas choravam, os braços choravam, os olhos, até eles (que estranho), choravam. Fiquei a saber, nessa madrugada depois da madrugada em que não apareceste, que havia outras madrugadas no teu corpo, outros corpos a caminhar na tua madrugada; fiquei a saber que estaria, desde aí até hoje (até todos os hojes), impedido de acordar. É assim que agora, todos os dias, abro os olhos: com todo o cuidado, em silêncio, para não correr o risco de acordar. Morre uma pessoa sempre que acorda sem o corpo, sabias? O meu ainda subsiste, diz-se por aí que sempre às voltas, que sempre apeado de parar. Mas ainda à espera da tua madrugada. Ainda à espera de que chegues e digas “desculpa o atraso”, “perdoa-me mas enganei-me na madrugada”. Eu depois tocarei na tua cara como se sentisse o toque da vida e direi apenas que “todos temos o direito de nos equivocarmos nas madrugadas” e ainda que “todas as madrugadas são enganos passageiros”. E depois irei abrir-te os braços e dizer-te que somos uma madrugada só. E que tudo o que vem depois de nós é a noite. Há um compromisso tácito, lembras-te?, entre mim e tu: elevar o minuto à categoria de para sempre. E no meu minuto nada avança sem a tua permissão. Para sempre."

Pedro Chagas Freitas
escritor, do Porto, com pinta.

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