"Passo a noite na madrugada do teu corpo. E os
minutos não se contam pelo relógio, nem pelo passar das horas; entre mim
e tu há um compromisso tácito de elevar o minuto à categoria de para
sempre. Nada nos aparta o sonho senão a
concretização desse sonho. Sabes: um dia acordei e não estavas e foi
então (toda a minha pele já o sabia antes mas eu ainda só desconfiava)
que percebi que acordar é um gesto contigo dentro. E deixei-me ficar,
volta após volta, na cama, à espera de que voltasses de onde estavas, à
espera de que me desses licença para acordar. Amamo-nos sem pedir
licença e é por isso que o olhar de um transporta o “sim, permito” de
que o olhar do outro precisa. Nesse dia não voltaste e eu aos poucos
fui-me recordando de que tinha um corpo para alimentar, de que havia uma
fome para saciar. Mas é a cabeça que manda no que sou. E estás por
dentro de tudo o que penso como a água está por dentro do vinho.
Estás-me como água no vinho – como uma impreterível necessidade, como
uma desesperante precisão. Somo-nos água por dentro do vinho e toda a
gente sabe que se tirares a água do vinho ficas com tudo – menos com
vinho. E o corpo começou a ceder, e tu não vinhas, e o corpo queria
comer e beber e aquelas coisas inúteis que são a madrugada quando a
madrugada não é a do teu corpo. Doía-me tudo e mesmo assim tenho a
certeza de que se chegasses tudo deixaria, nesse mesmo instante, de
doer. E bastaria um beijo, um “desculpa o atraso”, um “amo-te para
depois do que preciso”, para todo o corpo entrar na ordem necessária. É o
teu corpo que organiza o meu, as tuas palavras que me ensinam as
minhas. Não vieste. E a madrugada desfez-se e a noite chegou outra vez
(nem me lembro se houve dia, sem ti nunca me lembro se chegou a haver
dia). O meu corpo às voltas pela cama, o meu corpo à procura de parar.
Onde está o teu corpo que preciso do meu?, perguntava, e não havia
maneira de parar, as pernas choravam, os braços choravam, os olhos, até
eles (que estranho), choravam. Fiquei a saber, nessa madrugada depois da
madrugada em que não apareceste, que havia outras madrugadas no teu
corpo, outros corpos a caminhar na tua madrugada; fiquei a saber que
estaria, desde aí até hoje (até todos os hojes), impedido de acordar. É
assim que agora, todos os dias, abro os olhos: com todo o cuidado, em
silêncio, para não correr o risco de acordar. Morre uma pessoa sempre
que acorda sem o corpo, sabias? O meu ainda subsiste, diz-se por aí que
sempre às voltas, que sempre apeado de parar. Mas ainda à espera da tua
madrugada. Ainda à espera de que chegues e digas “desculpa o atraso”,
“perdoa-me mas enganei-me na madrugada”. Eu depois tocarei na tua cara
como se sentisse o toque da vida e direi apenas que “todos temos o
direito de nos equivocarmos nas madrugadas” e ainda que “todas as
madrugadas são enganos passageiros”. E depois irei abrir-te os braços e
dizer-te que somos uma madrugada só. E que tudo o que vem depois de nós é
a noite. Há um compromisso tácito, lembras-te?, entre mim e tu: elevar o
minuto à categoria de para sempre. E no meu minuto nada avança sem a
tua permissão. Para sempre."
Pedro Chagas Freitas
escritor, do Porto, com pinta.
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